segunda-feira, 26 de março de 2012

"Sobrevivente", de Yuri Flores Machado

Posto aqui um texto do amigo Yuri Flores Machado, vencedor da categoria conto no 6º Concurso Habitasul de Revelação Literária da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2005. Trata-se de um texto literário recheado de metalinguagem, na medida em que usa a biblioteca como espaço para sua ação e traz referências à própria literatura - algumas explícitas, outras não. Leia e descubra!
Justificar
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O Sobrevivente

Exerço o cargo de diretor da biblioteca central. Neste local conheci um homem que já trabalhava entre os livros há pelo menos vinte anos. Santelmo era um bibliotecário singular, com seus óculos de aros retangulares e lentes muito grossas que intensificavam o negrume dos seus olhos e também alongavam suas pálpebras. Estas pareciam duas espessas colchas sobre as órbitas oculares. Logo acima, duas sobrancelhas assemelhavam-se a duas baratas inertes. Completava o conjunto grotesco a cabeleira oleosa em revolta desde a primeira hora da manhã.
Contudo, eu não podia reclamar de seu trabalho, à sua maneira ele resolvia os constantes problemas de uma grande biblioteca. Avesso a atalhos, os gestos de Santelmo eram excessivamente tortuosos, porém, permeados pela eficácia e sempre coroados com o êxito. Santelmo, logo eu descobri, era um amante dos livros e da humanidade que podemos extrair deles.
Certo dia, sobre o mezanino da biblioteca, eu e o proprietário de uma empresa especializada no controle de pragas, observávamos os homens trabalhando no extermínio desses pequenos e indesejáveis inquilinos das bibliotecas, os insetos. Calados, supervisionávamos os movimentos dos exterminadores. Procurei com os olhos e mais uma vez enxerguei Santelmo agindo de modo extravagante. Nervoso e olhando para os lados, ele retirou um livro de uma estante e como se seu objetivo fosse furtá-lo, enfiou-o no bolso de seu sobretudo. A sua expressão era de triunfo, como se tivesse posto a salvo a civilização. Há bastante tempo eu me acostumara com as suas esquisitices e naquele instante não estranhei mais um dos esquetes de Santelmo e, com um sinal, solicitei que subisse até o mezanino. Apresentei Santelmo ao homem da empresa e este entendeu que era sua obrigação profissional entreter a mim e a Santelmo com uma palestra. Com um tom de voz acima do tolerável, o homem iniciou o seu discurso:
- Pesticidas e venenos fazem parte do passado. Com esta nova técnica revolucionária de extermínio desses detestáveis seres de seis patas, os funcionários e usuários de bibliotecas não correm mais o risco de alergias e intoxicações. É um progresso sem precedentes no controle de pragas e infestações em ambientes fechados, e como todas as grandes invenções, o princípio é simples: com uma lona lacramos hermeticamente a estante e com uma bomba de sucção retiramos o oxigênio do seu interior, substituindo este precioso gás, imprescindível a todos os seres que respiram, por hidrogênio. Resultado: Todos os insetos mortos!
Eufórico, o homem emitiu uma sonora gargalhada. Eu sorri complacente e até deixei escapar alguns risinhos cúmplices, afinal, realmente a técnica era eficiente e limpa. Santelmo soltou um suspiro, num misto de impaciência e irritação. Durante a explanação, verifiquei que o bibliotecário apresentava sintomas iguais ao de um vulcão na iminência de entrar em atividade, o que não tardou em acontecer:
- Tecnólatras e suas técnicas revolucionárias. Criam necessidades artificiais para escravizar incautos. Foram algumas destas técnicas inovadoras que deram fim à vida de milhões de seres, inclusive seres humanos. Mas não... é o maravilhoso século XX, o século do progresso e da ciência. O senhor sabia que é este seu tecnicismo galopante que está transformando a Terra em uma imensa fornalha!?
O dono da empresa ainda sorria com a boca levemente aberta e olhou atônito em minha direção, como que implorando que eu traduzisse as palavras de meu funcionário. Pedi licença ao homem e convidei Santelmo para um café em minha sala. Com diplomacia falei:
- Santelmo, eu verifiquei a tua pasta e constatei férias vencidas. Ninguém aguenta ficar tanto tempo sem descansar. Não diga nada hoje. Segunda... Segunda-feira nós voltamos a conversar.
- Férias? Não preciso de férias. Eu tenho muito trabalho. As pessoas vêm à biblioteca para utilizar microcomputadores, ler os jornais diários ou passar os olhos sobre essas revistas cheias de fotografias. Insisto que leiam algo que transcenda as suas vidas cotidianas e elas não me dão ouvidos. Estão embotadas. Este livro é um exemplo, permanece anos sem ser retirado.
Foi então que Santelmo retirou o livro do bolso de seu sobretudo e mostrou-me, mas tal qual um ilusionista recolocou-o rapidamente em outro bolso, de modo que não identifiquei o título da obra. Ele prosseguia com suas lamentações:
- Sabe diretor, certos leitores me dizem que este livro não passa de pura fantasia. Como se isto fosse ruim! Como se a fantasia não tivesse mais lugar neste mundo. Mas eu não desisto, depois que esses exterminadores de insetos voltarem para as suas casas, ele retornará são e salvo para a prateleira.
O bibliotecário virou as costas e desceu a escada caracol que liga o mezanino ao térreo. Os funcionários terminaram o extermínio e juntamente com o espirituoso antagonista de Santelmo despediram-se e foram embora. Ao final do expediente, noite fechada, avistei Santelmo da janela de minha sala. Ele provocava os motoristas, pedalando sua bicicleta em ziguezague entre os automóveis e era alvo de furiosos xingamentos.
A biblioteca encontrava-se às escuras e a claridade disponível consistia apenas no brilho da iluminação pública que penetrava pelas vidraças e clarabóias. Havia uma espécie de penumbra fabulosa nos corredores da biblioteca central e pensei, então, na inabalável solidão que habita os livros, naqueles extemporâneos gabinetes de leitura, nos bustos dos escritores que jaziam pelos cantos da biblioteca e assim caminhei até o local onde repousava o misterioso livro. Espremido num claro-escuro da prateleira, lá estava ele, como que querendo se ocultar. Abri-o aleatoriamente em um capítulo.
Tratava-se de uma célebre novela alemã e naquele instante, confesso, não compreendi o porquê da obsessão de Santelmo com o livro. Somente quando eu já esticava o braço para recolocá-lo na estante é que um inseto, com suas rápidas perninhas, percorreu-o de ponta a ponta, cruzou sobre o título da obra - A Metamorfose - e escondeu-se entre a orelha e a desgastada capa. Afobado, segurei o livro pela lombada e energicamente sacudi as páginas com o objetivo de desalojar o sobrevivente, mas ele escapou das minhas investidas, desaparecendo para sempre.
Alguns meses após esse acontecimento, perdi meu funcionário mais competente, “aposentado por motivos de saúde”. Mesmo com as inúmeras petições enviadas à junta médica, infelizmente, não consegui reverter decisão tão injusta.
Depois da partida de Santelmo, nos dias de desinsetização na biblioteca central, Gregor Samsa passou a encontrar refúgio no bolso interno do meu casaco.
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*Aproveitando o momento, quem aí já leu A Metamorfose? E outros escritos de Kafka? Comentem a respeito!

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