domingo, 12 de fevereiro de 2012

"O Artista" e a metalinguagem

O Artista é um filme genial – e simplesmente imperdível! Fazia muito tempo que não me surpreendia tanto com um filme, e o mais interessante é que ele não tem quase nada que deva surpreender de fato. Explico: o filme de Michel Hazanavicius, basicamente, usa da referência (e da reverência) para contar a história de George Valentin, um astro do cinema mudo que testemunha o avanço da indústria cinematográfica com o advento do som, não conseguindo se adaptar a essa evolução. Num jogo frequente de metalinguagem, o diretor aposta em todos os códigos disponíveis para buscar uma identificação plena de seu filme com tal época. Neste sentido, o filme de Hazanavicius é, em grande parte, um culto àquele modelo industrial hollywoodiano que tomava corpo de forma significativa na década de 1920: desde os créditos iniciais aos movimentos de câmera, passando pelos cortes e pelo trabalho de expressão corporal dos atores (especialmente na forma de pronunciar as palavras), tudo faz parte de um universo facilmente identificável que certamente mereceu boa dose de observação por parte de seu diretor.

Marcado pelo aspecto iconográfico da história do cinema, portanto, O Artista reforça uma tendência contemporânea nas artes que está ligada ao exercício frequente da metalinguagem. Ao contar tal história, a obra dá ao público a possibilidade de confrontar a mudança que serve de base ao roteiro, visto que o próprio filme é mudo. Naquela que talvez seja a grande sequência de O Artista (na minha opinião, genial), o protagonista “descobre”, por assim dizer, estarrecido, o som, e percebemos e compartilhamos, igualmente, o ponto de vista do artista que agora se vê deslocado e ultrapassado; a primeira cena também merece destaque: em um dos “filmes dentro do filme”, o personagem de George Valentin (vivido brilhantemente pelo ator francês Jean Dujardin, que reforça nas caretas de ator canastrão de cinema mudo), é torturado por um algoz que apenas pede para ele que fale.
A “imersão” proposta por Hazanavicius não é nova, nem mesmo em seu temática, mas sugere uma outra leitura para este que foi um momento tão delicado do show business, onde muitas celebridades, técnicos, diretores e roteiristas perderam seus empregos ao não conseguirem se adaptar a uma ruptura tão significativa, que de forma abrupta praticamente sepultou os filmes mudos em cerca de dois anos – o que acabou sendo agravado, também, pelo crack da bolsa em 1929 e pela consequente depressão norte-americana. Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, outra obra genial, também trata do tema, mas de forma muito mais soturna e realista; usa de uma estrutura narrativa moderna, ligada ao seu tempo, ao contrário de O Artista, que faz o oposto (a história do filme de Wilder, inclusive, usa de um artifício à época já conhecido dos leitores brasileiros: o narrador defunto); ao inserir sua narrativa num momento onde os filmes sonoros já estavam mais do que consolidados, Billy Wilder exercita sua metalinguagem também de forma diferenciada, escalando a atriz Gloria Swanson como sua “diva caída”, ideia dotada de uma brutalidade impressionante, visto que a própria atriz vivenciara o mesmo em sua trajetória (não tendo, porém, uma derrocada tão grande quanto sua personagem). Além disso, outras figuras relacionadas a esse período de transição povoam a história de Crepúsculo dos Deuses, como os diretores Erich von Stroheim e Cecil B. de Mille (este no papel dele mesmo), além de pequenas pontas de outras antigas personalidades do cinema mudo.

Ainda que tão marcado pelo excessivo grau de metalinguagem, O Artista se sustenta pela qualidade de seu personagem central e, principalmente, pelo envolvimento do mesmo com a personagem vivida pela atriz Bérénice Bejo. Naturalmente, não se trata de uma obra totalmente autônoma em função disso, pois sua forte ligação com as referências da estética cinematográfica são grande parte de sua estrutura. Esse tipo de jogo metalinguístico está muito presente nas artes na contemporaneidade, não só na narrativa cinematográfica, mas também nos quadrinhos e, em grande parte, na literatura. Neste último caso, trata-se de uma tendência que pode estar ligada a, no mínimo, três aspectos distintos: 1) uma certa “crise” na narrativa contemporânea, que parece não se interessar mais pelas “grandes” histórias – pelas grandes sagas que povoavam a literatura do passado (nenhum juízo de valor aqui); 2) uma forte tendência à narrativa autobiográfica, que frequentemente se utiliza dos personagens-escritores; e 3) o interesse mais do que presente (e, aparentemente, necessário para certos autores) de colocar em primeiro plano a manipulação dos limites da linguagem no seu próprio campo artístico, além de discuti-la.

Para além – ou aquém – de arroubos de criatividade de enredo, histórias mirabolantes e cheias de “trunfos” em sua narrativa, o uso da metalinguagem, em verdade, diverte. Arrisco até dizer que isso faz parte do forte grau de interação que todas as mídias e produtos artísticos parecem ter que carregar atualmente para terem destaque, onde, neste caso, interagir não está associado apenas ao conteúdo emocional e subjetivo. Propostas semelhantes ao filme de Michel Hazanavicius (que pode soar extremamente inovador para muita gente quando na verdade não o é) podem ser vistas em muitas outras obras de diferentes épocas e formatos, como o romance de Paulo Leminski Agora é que são elas, que li apenas recentemente, mesmo tanto tempo depois de conhecer bem a poesia deste autor que julgo brilhante. Uma espécie de “compêndio” de elementos da teoria da literatura tratados de forma paródica em uma narrativa um tanto caótica, o livro é uma diversão hilariante para quem domina certos elementos da área. Nisso, contudo, está sua limitação. Por outro lado, a proposta de um exercício de metalinguagem parece ser essencialmente esta: divertir e entreter iniciados, na medida em que também propõe algum grau de reflexão sobre o objeto artístico em discussão. Pode soar até pedante dizer isso: "iniciados", mas esta é a grande verdade nesses casos, onde quem não está familiarizado simplesmente não vê a mínima graça. Nesse sentido, para mim não há nada mais genial do que a obra do roteirista de histórias em quadrinhos Alan Moore: é visível em boa parte de seus livros o esforço por compreender os elementos estruturantes dos quadrinhos, principalmente no que tange a sua narratividade, seja no revisionismo do herói e do super-herói proposto em Watchmen, seja ao contemplar a tradição literária na série A Liga Extraordinária, uma vez que percebe nesta tradição, também, aquilo que, por sua vez, construiu o personagem de ficção nas HQs. O cinema de Quentin Tarantino e os filmes de Brian de Palma, por exemplo, são outras manifestações claras de que, paradoxalmente, a originalidade e a criatividade encontram-se na forma de juntar as peças de um mosaico de referências. Em grande parte, esta postura estética é, também, uma necessidade de entender o veículo com o qual se está lidando e os aspectos que envolvem a criação - e este, parece-me, é o ponto central de O Artista.

Acredito que o que mais interessa nesse tipo de tendência é a forma como tais obras parecem transpirar paixão por aquilo que discutem através de suas ligações internas e externas. E talvez seja isso que realmente importa: seja em tom de homenagem ou até mesmo a fim de desconstruir, há que se ressaltar que o exercício da metalinguagem exige um entendimento mínimo da mídia sobre a qual o objeto se sustenta; quando no primeiro caso - a homenagem -, entretanto, temos obras como O Artista, que está carregado de algo que falta a muitas histórias mirabolantes, virtuosísticas tecnicamente ou mesmo pretensiosas (esteticamente ou intelectualmente falando): é um filme com alma – e talvez só por isso mereça ser visto e revisto.