sábado, 22 de novembro de 2008

O pensamento de Nelson Rodrigues


O GÊNIO:
“Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.”

“Nada nos humilha mais do que a coragem alheia.”

“Quem nunca desejou morrer com o ser amado nunca amou, nem sabe o que é amar.”

“A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.”

“Amar é ser fiel a quem nos trai.”

“Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.”

“O ser humano é o único que se falsifica.”

“Todo ginecologista devia ser casto. O ginecologista devia andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um são Francisco de Assis, com a luva de borracha e um passarinho em cada ombro.”

O "ANJO PORNOGRÁFICO":
“O homem começou a ser homem depois dos instintos e contra os instintos.”

“Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.”

“Morder é tara? Tara é não morder.”

“Todo tímido é candidato a um crime sexual.”

“Nossa ficção é cega para o cio nacional. Por exemplo: não há, na obra do Guimarães Rosa, uma só curra.”

“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”

O MACHISTA:
“A mulher só se salva se for para o tanque. É o tanque a salvação da mulher”

“Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Só as neuróticas reagem, mas o homem não gosta de bater.”

“Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.”

“Desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil.”


O REACIONÁRIO:
“Todo desejo é vil.”

“O homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.”

“O biquíni é uma nudez pior do que a nudez.”

“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.”

“Sexo é para operário.”

“Sou um reacionário libertário.”

O CRÍTICO:
“O brasileiro chamado de doutor treme em cima dos sapatos. Seja ele rei ou arquiteto, pau-de-arara, comerciário ou ministro, fica de lábio trêmulo e olho rútilo.”

“Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral.”

“O brasileiro é um feriado.”

“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.”

“Os crentes e o padre é que estragam a missa.”

“O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.”

“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: a nossa.”

O TORCEDOR:
“Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.”

“Um Garrincha transcende todos os padrões de julgamento. Estou certo de que o próprio Juízo Final há de sentir-se incompetente para opinar sobre o nosso Mané.”

“Um time que tem Pelé é tricampeão nato e hereditário.”


“O futebol é passional porque é jogado pelo pobre ser humano.”

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"A Cidade na Praça", de Ana Carolina Lersch Eidam

Final de Feira do Livro! Longe dos debates repetitivos que sempre marcam essa enorme festa da literatura em Porto Alegre acerca das suas opções culturais/comerciais, a crônica da jovem Ana Carolina, 17 anos, tenta resgatar o valor simbólico que este evento tem para a cidade: a integração que a Feira estabelece com a paisagem urbana; um outro olhar sobre o centro "sujo" da cidade, uma nova forma de contemplação que só a Feira do Livro traz à capital gaúcha é o que propõe Ana, estudante do terceiro ano do Ensino Médio da Escola Martinho Lutero, de Cachoeirinha, RS, que eu, colaborador do Devaneio Literário, Vinicius Rodrigues, orgulhosamente, apresento como minha aluna. Aprecie!

*


Era lá que tudo acontecia. Já faziam 54 anos que era dessa forma. Cerca de duas semanas antes começava a ser preparada: vinham aqueles que planejavam, aqueles que construíam, aqueles que carregavam e montavam palcos, stands, passarelas e corredores. Depois que tudo estava pronto, os espaços antes vazios passavam a ser ocupados por todo tipo de material cultural possível, dando à praça, antes esquecida, um novo sopro de vida.
No princípio, era somente na praça, que sob suas árvores abrigava os seres curiosos que iam e vinham de um lado para o outro, sedentos por cultura e conhecimento. Depois ela foi crescendo e até nos dias de chuva já eram possíveis estes momentos que eram únicos no ano. Até que pequenos seres aumentaram sua curiosidade e passaram a procura-la incansavelmente, de forma que foi necessário atravessar a rua e explorar a orla do rio, nos inúmeros armazéns do cais do porto.
O que ela mais tinha a oferecer eram livros. De todas as cores, tamanhos, idiomas e valores. O paraíso das letras sempre a encantou e fez com que os outros se encantassem por ela. À medida que foi crescendo, percebeu que o mundo dos livros não acontecia somente em páginas impressas e encapadas. Foi assim que passou a ser visitada pelo teatro, a música, o cinema e até as artes plásticas.
Tornou-se um passeio familiar, um ponto de encontros de amigos, um centro de compras, um lugar que suscitava discussões e estimulava mudanças. Transformou-se em uma cidade dentro de uma praça, um espaço de refúgio para aqueles que, cansados da rotina do trabalho, buscavam um lugar para descansar sem esquecer que também eram compostos por cultura.
Passou a ser aguardada ansiosamente por aqueles que procuravam encontrar seus autores favoritos, tornar-se próximos a eles, conversando e pedindo autógrafos. Também por quem esperava aprender algo não convencional nos diversos cursos que oferecia.
Era quase como um circo itinerante, suscitando todo o tipo de emoção, tanto na sua espera quanto na chegada, encantando pessoas de todos os tipos e idades e trazendo um pouco de alegria e uma aura mágica à natureza cinzenta da cidade. Mas, assim como o circo, chegava uma hora em que era necessário ir embora. Tudo voltava à normalidade: a praça era novamente esquecida, os armazéns do cais despovoados e as pessoas retomavam a ordem natural de suas obrigações.
Sua magia ficava, então, presa nos livros que, quando abertos, despertavam aquele sentimento de um ser curioso que sentava embaixo das árvores para aproveitar a Feira do Livro. Esta sim, depois de ir embora, só lamentava profundamente ser tão sozinha em uma cidade com tantas criaturas sedentas por cultura.

Debaixo das árvores frondosas
Presenteada com um sopro suave,
Ela acontecia.
Embalada pelas águas do rio
Aquecida por um sol ardente,
Ela movimentava mentes.
Por sua forte personalidade
Por ser capaz de criar idéias
Ela graciosamente destoava
Da cinzenta cidade
Com muitos carros nas ruas
E bêbados nas praças.
Sua macia intensidade
Sua magnífica diversidade
Lembrava que não se perdera tudo
Lembrava que ainda não se conquistara tudo
Era muito mais que uma feira
Era muito mais que apenas livros
Era tudo
Que logo será nada
E terá que se esperar um ano inteiro
Para que volte a ser tudo outra vez.

Ana Carolina Lersch Eidam

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Poesia e cotidiano: a lírica tirada da página policial

Poesia e cotidiano confundem-se em três textos brilhantes de grandes poetas brasileiros que renovaram a lírica nacional ainda na primeira metade do século XX. Quintana e Drummond trazem tentativas extremamente pertinentes de propor um diálogo entre o sublime e os aspectos mais prosaicos. Em Bandeira, um desafio: mexer com o leitor com uma linguagem extremamente direta para um texto em versos. Nos três, entretanto, um elemento permanente: a morte, elemento-chave das notícias e, principalmente, das páginas policias de qualquer texto jornalístico - o jornal, claro, o texto prosaico por excelência.


"Morte do Leiteiro", de Carlos Drummond de Andrade

A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namor,
empregado no entreposto,
com vinte e um anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já tem pressa o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira o pouco de leite
disponível em nosso tempo
avancemos por esse beco
peguemos o corredor,
depositemos o lixo...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve

Meu leiteiro tão sutil,
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para a sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.



"Pequena Crônica Policial", de Mário Quintana

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grande beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, das bebidas...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!



"Poema tirado de uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira

João gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.