quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Sem narrativa, não há memória; sem memória, não há vida.

"Fahrenheit 451", de Ray Bradbury, de 1953, é até hoje um marco da literatura mundial pela abordagem contundente do poder da leitura e, principalmente, da importância da narrativa em nossas vidas. Juntamente com livros sensacionais como "1984", de George Orwell e "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, tornou-se um clássico da literatura de ficção científica dentro de um segmento que conhecemos por distopia, onde a abordagem das estórias faz sempre questão de vislumbrar um futuro pessimista e, por vezes, trágico para a raça humana, dentro dos valores pré-estabelecidos no presente na nossa sociedade.

Para Bradbury, assim como outros autores, o distanciamento com a leitura fatalmente faria com que se percebesse o quão modificador é um livro para aquele que o lê. Seguindo o raciocínio de que a humanidade freqüentemente retorna a posturas arbitrárias, apostando na censura e confiando sua liberdade a governos totalitários vez por outra durante a história, o ficcionalista americano coloca-nos num futuro onde os livros são queimados por bombeiros (que não mais apagam o fogo, mas sim provocam-no), para que a ordem social seja preservada. O que faz de Ray Bradbury e seu romance um diferencial, não é só sua visão de futuro. Pensar que a Cultura é o primeiro grande elemento afetado pelos totalitarismos é algo preconizado e já revisto muitas vezes, em outras obras. O autor vai mesmo a fundo na questão do poder da narrativa: sem literatura, o ato de narrar gradualmente se perde na sociedade e, logo, a memória também vai apagando-se - um prato cheio para, inclusive, modificar-se, naturalmente, a escrita da história da humanidade para fins particulares, pois a escrita para as pessoas comuns também é proibida neste futuro hipotético. E mais: sem memória, sem narrativa até mesmo no cotidiano, simplesmente, a vida fica vazia, os atos sociais tornam-se parcos e simplórios; sem a presença da leitura - de qualquer tipo - os homens e mulheres ficam infelizes e dóceis e não refletem. Tudo muito bem cuidado e trabalhado por Bradbury.

Há uma versão da obra para o cinema, de 1966, que marcou época, dirigida pelo mestre francês François Truffaut, que merece uma boa olhada também. Algumas cenas-chave podem ser vistas aqui:



O QUE SIGNIFICA FAHRENHEIT 451?


QUIMAR LIVROS POR QUÊ?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Os devaneios literários selvagens de Thoreau

"Para ser poeta é preciso seduzir os ventos e as correntezas e fazê-los falar."
Henry David Thoreau

Em tempos nos quais se discutem incansavelmente questões vinculadas à ecologia e o papel da natureza na nossa vida, é preciso relembrar de Henry David Thoureau. Filósofo e ensaísta brilhante, Thoreau (1817-1862) buscou no selvagem, nos aspectos primitivos aos quais estamos ligados, a sua motivação para falar sobre o que é viver e ser Homem em uma sociedade em permanente progresso. Para fugir do urbano e das "mentiras" às quais estamos presos, o escritor resolveu refugiar-se em uma cabana às margens do lago Walden e entregou-se à contemplação da natureza em seu estado puro e bruto - elemento recorrente na sua pequena (e, não por isso, menos interessante) obra poética, que pode ser muito bem comparada a alguns dos melhores versos do genial poeta norte-amereinano Walt Whitman. Dessa experiência quase transcendente, em meio à relva e à beleza da solidão no contato com a natureza, surgiu o clássico "Walden, ou A Vida nos Bosques".
De alma renascentista, uma vez que era dotado dos mais diversos interesses, Thoreau - que nasceu e viveu nos Estados Unidos - escreveu tratados sociológicos e filosóficos; tinha inflexão naturalista e mexeu com a historiografia e a literatura, além de ter sido poeta. Na postura frente à sociedade e no seu comportamento como escritor contemplativo, o filósofo pregava a volta ao rústico, ao primitivo, à simplicidade e a beleza das coisas simples, além de defender a "desobediência civil" (título de um dos mais famosos artigos seus que, em tempo de eleições, também merece resgate) e, em uma de suas frases célebres, afirmou: "O melhor governo é aquele que menos governa (...) e quando estivermos preparados para isso, serei a favor de um governo que não governa". Seus textos inspiraram uma série de figuras importantes da história da humanidade (de Léon Tolstói a Gandhi e Martin Luther King), porém, hoje, é um pensador pouco lembrado.


Em um de seus belos textos, "Andar a pé" (ou "Caminhando", dependendo da tradução), Henry Thoreau discute, em determinado momento, também, a literatura e os aspectos que a circundam, a poesia e a fantasia, numa perspectiva bastante singular:


"(...) Em literatura, só o rústico nos atrai. Frouxidão é apenas outro nome para mansidão. É o pensamento incivilizado, livre e bruto em “Hamlet” e na “Ilíada”, em todas as Escrituras e Mitologias, não aprendidas nas escolas, que nos delicia. Assim como o pato selvagem é mais veloz e mais belo do que o pato doméstico, assim também é o pensamento rústico, o qual de permeio com o orvalho cadente, alça seu vôo por cima das cercas. Um livro verdadeiramente bom é algo tão natural e tão inesperada e inexplicavelmente belo e perfeito como uma flor silvestre descoberta nas pradarias do Oeste ou nas selvas de Leste. O gênio é uma luz que torna visíveis as trevas, como o resplendor do relâmpago que, talvez, despedace o próprio templo da sapiência — e não uma vela acesa na flama da raça, que empalidece ante a luz comum do dia.

A literatura inglesa, desde os dias dos menestréis aos poetas laquistas — Chaucer e Spenser e Milton e mesmo Shakespeare inclusive — , não respira atmosfera completamente pura e, neste sentido, tom rústico. É uma literatura civilizada e essencialmente mansa, refletindo Grécia e Roma. Sua rusticidade é uma mata verde, seu homem selvagem, um Robin Hood. Há abundância de amor genial da natureza, mas não tanto da verdadeira natureza. Suas crônicas dão-nos conta de quando seus animais selvagens, e não o homem selvagem, tornaram-se extintos.

A ciência de Humboldt é uma coisa, a poesia é outra coisa. O poeta de hoje, em que pesem todas as descobertas da ciência e os conhecimentos acumulados da humanidade não apresentam vantagem sobre Homero.

Onde se encontra a literatura que dá expressão à natureza? Seria bom poeta aquele que pudesse imprimir os ventos e os rios em sua obra, para falarem por ele; aquele que fixasse as palavras às suas significações primitivas, assim como os fazendeiros enterram estacas no oitão que a geada fendeu; aquele que deduzisse suas palavras, sempre que as empregasse, transplantava-as para suas páginas ainda com terra aderente às raízes; aquele cujas palavras fossem tão verdadeiras, frescas e naturais que pareceriam expandir-se como os botões de rosas à aproximação da Primavera, embora permanecessem meio sufocados entre duas folhas fétidas numa biblioteca — sim, florescer e ostentar fruto lá, segundo sua espécie, anualmente, para o leitor fiel, em harmonia com a natureza ambiente.

Não tenho conhecimento de qualquer poesia que possa citar e que expresse convenientemente esta ternura pelo rústico. Que se aproxime desse estilo, o que há de melhor é medíocre. Não sei onde encontrar em qualquer literatura, antiga ou moderna, qualquer notícia que me encha daquela natureza com a qual estou ambientado. Percebereis que exijo alguma coisa que nenhuma idade, de Augusto ou de Elizabeth, que nenhuma cultura, em suma, pode dar. A mitologia aproxima-se desse ideal mais do que qualquer coisa. Em que natureza muito mais fértil não tem suas raízes a mitologia grega do que a literatura inglesa! A mitologia é o fruto que o Velho Mundo produziu antes de se exaurir o seu solo, antes que a fantasia e a imaginação fossem afetadas pela praga; e que ainda produz, onde seu vigor primitivo não se abate. Todas as outras literaturas resistem, apenas, como os olmos, que sombreiam as nossas casas; mas isto é como a grande árvore-dragão das Antilhas, tão velha como a humanidade, e, verdade ou não, resistirá tempo igual, pois a decadência de outras literaturas prepara o solo sobre o qual ela florescerá.

(...)

Os mais rústicos sonhos dos homens selvagens não são os menos verdadeiros, posto que não se possam recomendar ao senso comum de hoje dos Ingleses e Americanos. Não é toda verdade que se recomenda ao senso comum. A natureza reserva um lugar para a vinha silvestre assim como para a couve. Algumas expressões da verdade são reminiscentes, outras meramente sensíveis, como a frase, e outras, proféticas. Algumas formas de doença podem até ser prenúncios de formas de saúde. O geólogo descobriu que as figuras de serpentes, grifos, dragões voadores e outros fantásticos embelezamentos de brasões têm seus protótipos nas formas de espécies fósseis que foram extintas antes da criação do homem e, daí, “indicam um conhecimento fraco e sombrio de um prévio estágio de existência orgânica”. Os Indus sonharam que a Terra repousava sobre um elefante, o elefante numa tartaruga e a tartaruga numa serpente: e, posto que seja o caso duma coincidência sem importância, não virá fora de propósito lembrar-se aqui que se descobriu recentemente na Ásia uma tartaruga fóssil, suficientemente grande para suportar um elefante. Confesso-me suspeito no que tange a estas fantasias do agreste, que transcendem a ordem do tempo e a do progresso. São o recreio mais sublime do intelecto. A perdiz ama a ervilha, exceto a que, com ela, vai para a panela.

Enfim, tudo que é bom é agreste e livre. Existe algo numa nota musical, seja produzido por um instrumento, ou pela voz humana — tomai para exemplo o som de uma corneta numa noite de Verão — que, por sua rusticidade, falando sem ironia, recorda-me os gritos emitidos pelas feras selvagens em suas florestas nativas. Pelo que infiro, trata-se de qualquer coisa da sua rusticidade. Dai-me para amigos e vizinhos homens selvagens, e não civilizados. A rusticidade do selvagem é apenas um pálido símbolo da terrível ferocidade que preside à sociabilidade dos homens e dos amantes. (...)"

THOREAU, Henry David, Andar a pé. (Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte)